segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Terras de Xisto - 5ª Parte - Confronto




Regressar a 4ª parte neste link


O som de uma pancada acordou-a e fê-la saltar na cama, sobressaltada.
Sentou-se e pôs-se à escuta.
Lá fora o vento uivava e ouviam-se as gotas de chuva misturadas com a neve que caíam no telhado. Pela janela da sala conseguia ver que era já noite e avizinhava-se tempestade.
Nova pancada, desta feita conseguiu ver que era na porta da varanda que dava para a rua das traseiras.
Sem acender o candeeiro aproximou-se e espreitou pelo vidro da porta, se o quisessem partir, já o teriam feito. No chão da varanda estavam duas pedras do tamanho de um punho e, enquanto olhava, uma outra surgiu em voo resultando em nova pancada.
- Quem é o endemoinhado… - Exclamou abrindo a porta de rompante.
O ar gelado bateu-lhe com força no rosto com a neve molhada enquanto espreitava para a rua e tentava distinguir quem era o homem que se ocultava na escuridão.
- Maria! – Uma voz por demais familiar chamou num sussurro.
- Zé! – Quase gritou – Que fazes aí, homem de Deus, que se te pilham, matam-te. – Tapou a boca rapidamente e olhou para trás como se o Coxo estivesse ali na sua casa.
- Atira-me a chave da loja. – Pediu ele notando-se um sorriso na voz – Depressa que me gelo.
Correu à cozinha, espreitou pela frincha da porta. O “carcereiro” não estava lá, possivelmente procurara um sítio mais abrigado da tempestade. Pegou a chave e atirou-a da varanda.
Atenta, ouviu abrir suavemente a porta da cave e tornar a fechar. Arrastou o mais silenciosamente que pôde a mesa do meio da cozinha e afastou o tapete expondo uma porta que abriu imediatamente.
Do buraco escuro emergiu um vulto rapidamente identificado pelo rosto sujo mas sorridente do Zé Sobreiro e ambos se atiraram nos braços um do outro num abraço fremente de amor e alívio.
De repente a jovem empurra-o e começa a dar-lhe murros no peito e a invectiva-lo:
- Estúpido. Bandoleiro. Que fizeste tu, alma perdida? Como foste capaz de nos levar à perdição desta forma?
O homem, do alto dos seus quase um metro e noventa, abraçou novamente Maria, prendendo-lhe os braços e fazendo-a parecer uma criança nas mãos de um gigante enquanto suplicava:
- Perdoa-me meu amor, mas aquele fideputa fez-me perder a cabeça. Provocou-me, insultou-te e desafiou-me para a luta.
Desanimada, deixou-se prender naquele enorme mas suave amplexo:
- O que foste fazer… Valham-nos todos os Santos…
- Como é que ele está? – Quis saber sem a soltar
- Que o salve o Diabo, porque se Deus o salvar, é por nós e não por ele. – Sentenciou a jovem
- Mas morre? – Afastou-a para olha-la nos olhos com um ar de preocupação.
- Que sei eu? – As lágrimas afloravam novamente aos grandes olhos castanhos – Dizem que o médico não sai do pé dele e que está como morto. Parece que até chamaram um médico do Porto.
- Aquele infeliz… - Abateu-se de olhos no chão. – Sabia que não podia comigo, porque cismava sempre de se bater? Pedi-lhe que me deixasse e acabei por lhe virar as costas. – O tom de voz elevava-se à medida que as recordações acudiam, vivas, à memória. – O bastardo descarregou-me uma varada nas costas e, quando dei por mim, lutávamos os dois furiosamente à bordoada.
Maria benzeu-se rapidamente enquanto ele continuava a narrativa:
- Foi enquanto o Diabo esfrega um olho que o bandalho estava estirado no chão a sangrar da boca e do nariz. Fiquei-me aparvalhado, como se tudo aquilo fosse um sonho, até que o tio Joaquim me agarrou no braço e disse “Vai-te rapaz. Vai-te depressa que te matam.”. Corri como um louco montes fora e só parei na Pala da Ovelha por cima da estrada que vem da Vila.
- Santo Nome de Deus! – Exclamou a jovem. – Os lacaios do Samões correram os montes todos esta noite.
- E eu não os vi? Não acendi fogo nem nada, gelei-me ali aninhado nas pedras noite toda sem um pio.
- Ninguém entrou na Pala?
- O estranho foi isso. O João do Nabal entrou. Não levava archote, olhou a toda a volta e saiu. Ouvi-o dizer aos outros que lá não estava ninguém.
- Acho que desconfiou que lá estavas, é bom homem o João.
- Também achei. Achas que poderá ajudar-nos?
- Não sei. É bom homem mas não desafia o patrão. É melhor não fiar.
- E agora? O que fazemos? – O desalento dele era reforçado pelo cansaço visível nos olhos encovados do rosto tisnado pelo sol.
- Temos que fugir, e depressa. Falei com o João do Nabal e com a D. Genoveva. Todos me dizem que temos que fugir. Queriam que fosse mesmo sem ti, acham que a desgraça maior ainda está para acontecer.
- E vamos para onde?
- Primeiro vamos pelas ruínas da casa da Ribeira. A D. Genoveva, que os anos lhe sejam leves, deixou lá algumas moedas para podermos começar a vida, depois emos de ir a qualquer lado.
- Tenho família em Amarante… - Disse pensativamente.
- Podemos ir, mas não já. Se o Luís morrer, a Guarda há-de estar lá à nossa espera. Nem em Soutelo, nos meus parentes vamos passar. Vamos directos a vau pelo rio em direcção a Alijó e dali ao Porto, como me disse o meu tio. A cidade é grande e não darão por nós tão fácil.
Não tiveram tempo de planear mais. Com um estrondo, a porta da cozinha abriu-se de par em par para permitir a passagem do Quim Coxo e do Linhaças.
- Não te disse que vi o excomungado a entrar aqui? – Perguntou ufano o ultimo.
Zé ergueu o cajado e puxou Maria para trás de si:
- Vinde, filhos da puta, mostrem lá se têm tomates que chegue para me apanharem.
À luz tremeluzente do candeeiro, os dois facínoras olharam-se com um ar de riso:
- Olha, olha. – Gozou o Coxo – Já a formiga tem catarro.
- Tenho aqui uma coisa para ti. – O Linhaças puxou voluptuosamente do cinto um revolver que apontou. – Gostas?
Maria apertou-se contra o Zé que, preocupado, avaliava a situação.
- Julgas que eu sou o patrãozinho armado em heroi? – A boca com poucos dentes soltava perdigotos. – Mas se calhar já não estarás vivo quando lá chegares.
- Depois virei tratar dessa rameira que aí tens. – Ameaçou o Coxo.
Os dois olharam-se novamente e tornaram a rir desabridamente.
Aproveitando a distracção, Zé empurrou Maria para o interior da casa e descarregou pesadamente o bordão na mão armada do Linhaças que uivou de dor:
- Ai filho da puta que me partiste a mão!
Nova bordoada pelos ares e foi a vez de quebrar ossos do Coxo que chocou com força contra a antepara da porta da cozinha.
Como um relâmpago, tornou para o Linhaças que gemia e chorava agarrado á mão partida e apontou-lhe o bordão à cabeça:
- Queres ficar estendido de uma vez, filho de um cabrão? – A voz do Zé estava alterada pelo esforço e pelo ódio. – Não me custa nada matar mais um.
Um estampido ecoou nos ouvidos de todos.
O facínora e o Zé continuavam a olhar-se de olhos arregalados até que este ultimo tomba de joelhos e em seguida de borco largando o bordão que rolou para dentro da sala.
Sem o enorme jovem na frente, o Linhaças pode ver o Coxo deitado no chão empunhando o revólver fumegante que se perdera na refrega.
Um com a mão e outro com o braço partidos, colocaram-se junto ao corpo desacordado.
- Será que o patrão precisa mesmo falar contigo? – O Coxo empunhava a arma apontada à cabeça do ferido. – Ou vamos ter que alombar com um porco morto até ao solar?
Só o zurrar do riso do Linhaças se fazia ouvir no interior da casa.
- Não ouves? – O Coxo gritava – Dá-me uma boa razão para não te mandar para os infernos já.
O outro saltava de excitação enquanto esfregava a mão ferida e gritava:
- Mata-o. Mata esse filho da puta, ou dá-me a pistola que o mato eu. - De repente, um esguicho de sangue salpicou-o e olhou incrédulo o seu companheiro que se abatia pesadamente com uma expressão de espanto no rosto ensanguentado.
Restava Maria em pé empunhando uma sachola sangrenta.
Após uns segundos de hesitação, o Linhaças deu meia volta e desapareceu correndo pela porta da rua, escorregando na neve e chocando com as pessoas que principiavam a amontoar-se à entrada.
A jovem atirou a enxada para o chão, apanhou o bordão e ajudou o Zé a erguer-se:
- Vem meu amor. Vamos embora daqui.
Embora atordoado e a perder sangue abundantemente, abandonaram a casa deixando um rasto vermelho na neve por entre a pequena multidão que abria alas à sua passagem.


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2 comments:

M.L.M disse...

Acabei de ler 5; parte deste deste interessante conto ,espero ansiosamente o dia de amanhã para ver como termina, porque a coisa está a ficar feia para o lado dos apaixonados .

maria luísa

Everson disse...

E agora??? Ambos assassinos???

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