segunda-feira, 16 de abril de 2018

Uma Casa nas Ruas - 8ª e última parte

KARMA


A inesperada “herança”, de perto de cinco mil euros, que o Vesgo escondera, foi uma verdadeira dádiva de para para os dois amigos. Foram, de “carro de praça”, a Castro Daire comprar roupas, comida e os tão necessários medicamentos para o Zé. Puderam também fazer algumas reparações na casa, sempre acompanhados de perto pelo “passarão” que não os abandonava, vigiando de perto os seus movimentos e assobiando as suas “canções” para os distrair.
Animada com a transformação de Xico, Maria Alice chamava frequentemente a dupla para almoçar e, por vezes, pedia-lhes ajuda para cuidar do gado, vacas e porcos,  que, junto com um pequeno pomar, eram a sua fonte de rendimento.
Estava-se no fim de Outubro. O dia passara dominado por um sol inusitado, enquanto ajudaram no embarque de alguns bovinos para o matadouro. Terminaram a jantar em casa da proprietária e após isso, a ti Joana, a velha matriarca, ficou-se a ressonar mansamente no cadeirão, em frente à televisão, enquanto Zé e Daniel brincavam com os dois gatos da casa. Xico e Maria Alice vieram para a varanda das traseiras da casa, debruçada sobre a propriedade. Depois do dia quente, a noite estava fresca, embora bem iluminada por uma lua de prata, que ofuscava as estrelas do céu de veludo negro, sem nuvens.
—    Foi um bom dia da trabalho! — Afirmou ele, quase que de si para si, olhando para a noite, onde se distinguia, quase no horizonte, o clarão das luzes da vila.
—    Sim. — Ela concordou, encostando-se ao pilar da varanda, ao lado dele. — Se não fosse a vossa ajuda, não conseguiríamos embarcar tudo agora de tarde. Estou-vos muito agradecida. Acho mal que não queiram receber pelo trabalho.
—    Estás maluquinha? — Ele levou o copo de aguardente velha à boca, antes de continuar. — Depois de tudo o que tens feito por nós? Sempre a mandar comida e a convidar-nos?
—    Mas a vossa ajuda tem sido muito importante. Desde que, um dos homens que tinha a cuidar dos animais emigrou, os dois restantes queixam-se de muito trabalho e um deles tem faltado muitas vezes. — Alice inclinou-se sobre a balaustrada.
Xico apreciou longamente o corpo bem proporcionado da amiga, respeitando o silêncio dela, que olhava fixamente as sobras fora da área iluminada pela casa.
—    Estive já para vender os bovinos todos. — Continuou ela. — A morte do meu marido trouxe-me muito trabalho, mas fui aguentando. A emigração levou-me um empregado, mas não tarda leva-me outro. Na aldeia só há velhos e na vila ninguém quer trabalhar aqui. Agora, com a crise, compra-se menos e mais barato, mandar vir gente de longe, torna-se incomportável.
—    Mesmo assim, tens feito um excelente trabalho. — Reconheceu ele, olhando-a no olhos enquanto ela se endireitava. - É uma pena desistir.
—    Eu não quero desistir. Até quero comprar mais. O senhor Duarte tem mais uma dezena de vacas e um touro que quer vender. Quer reformar-se, os filhos estão para fora e não querem saber de nada.
—    Ele quer muito dinheiro?
—    O dinheiro nem é o problema principal. — Alice devolveu-lhe o olhar, com intensidade. — Embora também tenha que ser considerado. O problema é o pessoal, o que me leva… — Baixou os olhos e tornou a voltar-se para a escuridão, enquanto retorcia uma ponta da fralda da camisa, com os dedos finos mas fortes.
—    … que te leva a pedir-nos ajuda. — Concluiu Xico, esgotando o copo de uma golada. — Queres contratar-nos.
—    Mais do que ajuda. — Ela tornou a voltar-se para ele e tirou-lhe o copo da mão, com que ele brincava perigosamente e pousou-o na pedra da balaustrada. — Quero que sejas meu sócio.
O convite apanhou-o de surpresa e o seu rosto não conseguiu esconde-lo.
—    Não te agrada a ideia? — Ela corou, enquanto ele pegava de novo no copo e retomava os malabarismos com o pé entre os dedos. — Entravas com algum dinheiro para a compra da nova manada e passavas a trabalhar em tempo inteiro na quinta. Tu e o Zé, que foi uma agradável surpresa ver tudo o que consegue trabalhar, apesar das limitações.
Os olhos dele, fitava-na, vazios. Olhava-a, mas o seu pensamento estava longe. Brincava com o copo, mas tardava em responder. Irritada, ela tornou a tirar-lho e a pousa-lo novamente.
—    Não tens nada a dizer? — Começava a arrepender-se da proposta, que por alguma razão, parecia não lhe agradar. — Não queres, pronto, deixa! Faz de conta que eu não disse nada!
Desconcertado, ele volveu os olhos para o chão e reatou a “brincadeira” com o copo. O rosto estava corado e parecia ter dificuldade em respirar.
—    Nunca tive nada realmente meu. — Falou por fim, com os olhos húmidos. — A minha pobre mãe ficaria orgulhosa... o que eu a fiz sofrer.
—    Oh, meu pobre querido. — Ela tirou-lhe o copo das mãos e arremessou-o para a escuridão. Depois abraçou-o e beijaram-se demoradamente.
Não muito longe dali, um melro assobiava uma melodia feliz.
O negócio foi de vento em popa e em breve acabaram por se mudarem para a casa de Alice, maior e com melhores condições. Apenas um ano depois de regressar a Pepim, Xico passara de um vagabundo das ruas para um proprietário de sucesso. As pessoas que o olhavam com desprezo, agora pensavam melhor nas suas atitudes e até a mulher do Manuel da mercearia parecia simpática.
A única nuvem negra na sua nova vida, foi o dia em que um BMW preto chegou à aldeia e parou em frente à casa onde ele nasceu. Uma mulher jovem e bonita saiu e dirigiu-se à porta. Xico correu.
—    Menina, posso ajuda-la? — Ele apreciou o corpo bem feito, cabelo comprido negro, blusa vermelha e saia preta, com sapatos de tacão alto.
—    Xico? — O rosto moreno dela olhava-o com curiosidade.
—    Desculpe, eu… não… Luísa? — Arregalou os olhos, de espanto.
—    Sim, é verdade. — Confirmou ela sem sorrir. — Sou mesmo eu, a tua irmã.
—    Estás linda! — Ele estava sem saber como reagir. — Eras uma menina…
—    Sim, era uma menina. — A boca dela torceu-se num esgar de desagrado. — Uma menina que tu deixaste junto com a nossa mãe, sem dinheiro e com a vergonha dos roubos que cometeste.
—    Sim, tens razão. — Ele baixou os olhos. — Agi mal, peço-te que me perdoes.
—    Perdoar, eu? — Os olhos brilhavam de raiva. — Quem tem que te perdoar já não pertence a este mundo. Eu não tenho que te perdoar nada porque nem sei quem és. Telefonaram-me a dizer-me que estavas cá e eu não acreditei no teu desplante, tive que ver com os meus olhos.
—    Não fiques com raiva de mim, Luísa. Eu mudei, já não sou o mesmo canalha que fazia aquelas barbaridades.
—    Eu não sei quem tu és! O meu irmão morreu há muito tempo! Morreu, no dia em que se foi embora, morreu, cada vez que uma vizinha vinha reclamar que foi roubada, morreu, cada vez que nos faltou a comida no prato porque o dinheiro era pouco para tapar as vergonhas que nos deixaste… — Gotas, como pérolas, corriam no rosto belo. — … morreu, em cada lágrima que a nossa mãe verteu por ti, apesar de todo o mal que lhe fizeste. Mesmo assim, conseguiu o suficiente para eu acabar o curso… morreu cedo, porque tu acabaste com ela.
—    Eu agi muito mal, irmã, eu sei. — Ele tinha os olhos rasos de água. — Diz-me o que posso fazer para te compensar.
—    Nunca poderás compensar-me!  — Luísa espetou o indicador na direção dele. — Formei-me enfermeira e casei com um médico, não me falta nada, não preciso de ti para nada… agora. Achavas que aparecias agora, pedias desculpa e um raio divino descia dos céus e perdoaria tudo o que fizeste e comporia toda a dor que aqui deixaste? As coisas não funcionam assim, Deus é grande e ainda hás-de pagar pelo mal que nos fizeste. Já não és meu irmão, porque ele morreu há muito tempo, és apenas um vagabundo que arrombou a MINHA casa.
—    Tua casa? A casa era da mãe, é nossa. — Protestou fracamente.
—    Não sei quem és, para mim és um intruso! Não quero ter nada a ver contigo, na hora em que decidires roubar mais dois ou três vizinhos. Abandonaste-a, não tens mais direito a esta casa, sai ou mando cá a policia expulsar-te!
Voltou-lhe as costas, decidida, mas com as lágrimas a correr no rosto, entrou no carro e arrancou violentamente.
Maria Alice como que se materializou ao lado dele e agarrou-lhe um braço, enquanto sussurrava suavemente:
—    Deixa lá. A minha casa é a tua casa, não precisas dessa. Não te deixes abater, ela está muito magoada e tem a sua razão… perdoa-lhe… pode ser que um dia ela consiga fazê-lo para contigo também.
 Depois da dor inicial, acabou por esquecer e perdoar o facto da irmã o não conseguir.
Com o tempo, a árdua vida de trabalho, aliada ao doce convívio com Alice e o filho, a amizade do Zé e do Manel, começou a produzir efeitos e a apagar gradualmente as memórias dos maus tempos nas ruas do Porto, que pareciam afinal, vividas por uma outra pessoa.
Beneficiando do abandono das terras e da desertificação da aldeia, comprou mais terrenos e escreveu à irmã para que fizesse um preço sobre a casa dos pais. A resposta nunca chegou.
Maria Alice estava grávida, ao fazer dois anos do regresso de Xico. Tinham mais funcionários e ele via-se obrigado a circular entre as propriedades, não se demorando muito em nenhuma. Possuíam já umas boas centenas de cabeças de gado bovino, caprino e suídeo. Estava a revelar-se um bom gestor e multiplicara muitas vezes o património obtido de forma pouco honesta.
Um dia, regressava de supervisionar a tosquia das ovelhas, quando viu o jipe da GNR parado em frente da casa de sua mãe e dirigiu-se para lá. Maria Alice, com a sua barriga de fim de gravidez, gesticulava para dois guardas, enquanto Zé tentava acalma-la, segurando-lhe um braço.
Xico acelerou e parou o seu jipe mesmo ao lado do da força de segurança e saiu de rompante.
—    Que se passa aqui? — Perguntou cheio de autoridade, correndo para o grupo.
—    Não venhas, Xico, foge! — Alice chorava e gritou para ele assim que o viu.
—    Francisco Soares? — Um dos guardas acorreu a cortar-lhe o caminho para a viatura, postando-se frente a ele, com a mão no coldre da pistola. — Está detido como suspeito do homicídio de António Ferreira, também conhecido como Tone Vesgo.




****** FIM ******




 

7 - Criar Raízes
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